28/11/2019
Por que é repulsiva a ideia de criminalizar a advocacia


Por que é repulsiva a ideia de criminalizar a advocacia

O Estadão publicou artigo do Conselheiro Federal da OAB pela Paraíba, Wilson Sales Belchior, no qual o advogado aborda a a repulvisa ideia de criminalizar a advocacia. Confira o artigo na integra abaixo: 

Por que é repulsiva a ideia de criminalizar a advocacia

Por Wilson Sales Belchior 

As discussões travadas a partir do julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre execução antecipada de pena após condenação em segunda instância transbordaram a esfera criminal e até o Direito. O debate público sobre o que deveria fazer a corte constitucional abarcou discursos de cunho social, político e de imprensa. Às Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54 adesivaram-se clandestinamente, por exemplo, polêmicas sobre elegibilidade e eleições presidenciais, conveniência da opinião pública e atuação da mídia na publicidade de processos. Na perspectiva de que tudo isso pudesse, em tese, influenciar o decision making.  

Nesse emaranhado de juízos de valor destilados na mídia e nas redes sociais é possível encontrar um ovo de serpente. Expressões sub-reptícias como “advogados de bandidos” e “cumplicidade entre advogados e juízes” apontam para um perigoso ponto futuro: a criminalização do exercício da advocacia. São frases que, em sua essência, encaixam-se perfeitamente às até hoje fracassadas tentativas de estigmatizar o advogado, com o objetivo final de atingir seus clientes. A vítima colateral, porém, é o múnus público que está sobre os ombros de quem foi encarregado pela Constituição de defender as garantias do processo a todo cidadão, conceito sem o qual o Estado Democrático de Direito não se sustenta. 

São ataques que atingem em cheio o próprio sentido da advocacia, especialmente a criminal. Nada há mais arbitrário que, mirando a confiabilidade do profissional, tentar afastá-lo de seu compromisso com o dever de justiça associando-o aos tipos penais do próprio processo sob seus cuidados. Ou usar de um abstrato senso comum de impunidade para diminuir a função social desempenhada pelos advogados, assegurada pela Constituição Federal. 

O objetivo deste texto não é discutir o mérito das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, o voto dos ministros do STF divulgados até agora ou as diferentes percepções da sociedade acerca das teses. Tampouco é defender os profissionais do Direito Penal e de áreas correlatas. A preocupação vai além dessa superfície. O que está em jogo é a própria liberdade do exercício da advocacia no Brasil em sentido lato. 

Uma conhecida troca de correspondências entre dois ilustres advogados do início do século XX é ilustrativa como lição de ética profissional. Evaristo de Morais buscara orientação de Ruy Barbosa para um caso de homicídio decorrente de um adultério, que chocou a sociedade da época. A consulta se dera porque o acusado defendia militância política oposta à dos dois advogados correspondentes. A dúvida era se seria ético exercer a defesa do réu perante o Judiciário nesse caso. 

A campanha presidencial naqueles idos de 1910 dividia “hermistas”, liderados pelo Marechal Hermes da Fonseca — onde enfileirava-se o réu —, e “civilistas”, liderados pelo próprio Ruy Barbosa, que defendiam mudanças nas práticas políticas da chamada República Velha (1889-1930).  

Questionou, então, Evaristo de Morais a Ruy Barbosa: “(i) devo, por ser o acusado nosso adversário, desistir da defesa iniciada?; (ii) prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laços que me prendem à bandeira do civilismo, cometo uma incorreção partidária?”. De forma magistral, Ruy Barbosa esclarece o papel da advocacia e o objetivo da defesa do acusado, explicando que o direito de defesa é amplo e irrestrito, aspectos que deveriam ser sempre lembrados para que se afastasse qualquer tipo de ideia de criminalização da advocacia. 

Lançando mão de trechos daquela conversa, é possível ver a advocacia como a “voz do direito no meio da paixão pública”, com a missão sagrada de não concordar que a indignação se transforme em desumanidade e a pena jurídica em extermínio cruel, reivindicando o cumprimento das garantias legais, equidade, imparcialidade e humanidade, resistindo-se “à impaciência dos ânimos exacerbados, que não tolera a serenidade das formas judiciais, (…) trabalhando para que não faleça ao seu constituinte uma só dessas garantias da legalidade”. 

“Ninguém, por mais bárbaros que sejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade”, vocifera Ruy Barbosa. Nem há cidadão ou causa que seja “indigno de defesa”. Por isso, a função social desempenhada pelo advogado não comporta a recusa da defesa de um acusado independentemente do delito imputado, o que leva à conclusão do jurista: “nem por isso, todavia, a assistência do advogado, na espécie, é de menos necessidade, ou o seu papel menos nobre”. 

Comentário do professor Edward Christian sobre o tratado “Commentaries on the laws of England”, de William Blackstone, lança ainda mais luz sobre a premissa: “por mais atrozes que sejam as circunstâncias contra um réu, ao advogado sempre incumbe o dever de atentar para que o seu cliente não seja condenado senão de acordo com as regras e formas, cuja observância a sabedoria legislativa estabeleceu como titulares da liberdade e segurança individual”. 

O advogado, portanto, não é somente procurador da parte, mas colaborador do sistema de Justiça nacional. A Constituição de 1988 estabeleceu a advocacia como indispensável à administração da Justiça. A liberdade de exercício profissional associa-se diretamente à garantia de valores democráticos, tais como ampla defesa, devido processo legal e contraditório a todos os cidadãos brasileiros. Responsabilizá-lo moralmente por eventual ato praticado pela parte é uma frontal agressão à Carta Magna. 

Ruy Barbosa ajuda a desfazer outro engodo quando explica que a defesa, por mais detestável que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a acusação. A defesa não quer a apologia da culpa ou do culpado, mas sua função consiste em ser, ao lado do acusado inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais. E por isso é obrigatória e adequada ao arcabouço axiológico de um Estado Constitucional de Direito. Porque não se admite a confusão entre Justiça e vingança. E porque não se pode sacrificar o império da lei. 

Qualquer tentativa de criminalizar a advocacia merece o repúdio veemente de toda a comunidade jurídica. Essas atitudes são antidemocráticas e importam em violações ao texto constitucional. O advogado, no exercício da profissão, concretiza o direito de defesa garantido indistintamente pela Constituição. Afirmações em sentido inverso contrariam valores do Estado Democrático de Direito e não atingem somente advogadas e advogados, mas também os objetivos institucionais vinculados à própria noção de regime político democrático. Tentar criminalizar a advocacia é ser contra a democracia.

* Conselheiro Federal da OAB